Sindicato dos Trabalhadores em Postos de Combustíveis da Bahia
/ quinta-feira, março 28, 2024
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‘Ficava sem salário e tinha que tomar água suja’, diz resgatado de trabalho análogo à escravidão

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“Isso eu não desejo pra ninguém”, diz João (nome fictício), de 53 anos, ao relembrar o período em que trabalhou em situação análoga à escravidão.

Ele e os colegas se amontoavam em barracas de lona no mato, onde dormiam em redes e bebiam água suja. “Não tínhamos outra opção”, conta à BBC News Brasil.

João relata que desde o fim da década de 80, quando se mudou para Vila Rica (MT), trabalhou em situação degradante em diversas propriedades rurais da região, que faz divisa com o Pará. “Era tudo muito precário e complicado”, lamenta.

Ele costumava trabalhar em derrubadas de mata em fazendas, para abrir espaços de pastagem – prática frequentemente considerada ilegal, por não haver autorização para o desmatamento.

O papel de João nas atividades era de “badeco”, como são chamados os responsáveis pelos serviços gerais no lugar e pelas refeições dos trabalhadores.

“Em alguns dias havia carne, em outros a gente tinha que matar algum animal para ter alguma comida”, diz João.

O recrutamento

Os serviços nas propriedades rurais eram liderados por uma figura conhecida como “gato”, responsável por intermediar o contato entre o fazendeiro e o trabalhador.

Ao chegar às fazendas, segundo João, eles eram informados que somente poderiam sair dali ao fim do trabalho – que chegava a durar dois meses.

“Ninguém tinha carro ou moto, então, a gente não tinha como ir embora, mesmo que a gente quisesse. Falavam que iam assinar a nossa carteira, mas nunca assinavam”, detalha.

Nas propriedades rurais, os trabalhadores esperavam receber conforme a produção que faziam. Mas raramente viam o pagamento. “O ‘gato’ sempre enrolava, dizia que o fazendeiro não tinha pagado e não repassava o dinheiro para a gente. Não tínhamos o que fazer”, detalha.

Histórias como a de João chamam a atenção após declarações do presidente Jair Bolsonaro, na terça-feira (30). Ele afirmou que é necessário rever as regras do combate ao trabalho análogo à escravidão.

Bolsonaro disse que “ninguém é favorável ao trabalho escravo”, mas se dirigiu ao ministro Ives Gandra Martins Filho, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), e afirmou: “Alguns colegas de vossa excelência entendem que o trabalho análogo à escravidão também é escravo. E pau nele.”

Trabalhadores dormiam em redes
Direito de imagem SÉRGIO CARVALHO/AUDITOR-FISCAL DO TRABALHO Image caption Local onde viviam trabalhadores resgatados recentemente em operação do Ministério Público do Trabalho

Para o presidente, há uma linha “muito tênue” que distingue o trabalho análogo à escravidão e a escravidão. “O empregador tem que ter essa garantia. Não quer maldade para o seu funcionário, nem quer escravizá-lo. Isso não existe. Pode ser que exista na cabeça de uma minoria insignificante, aí tem que ser combatido. Mas deixar com essa dúvida quem está empregando, se é análogo ou não é, você leva o terror para o produtor”, disse Bolsonaro.

No dia seguinte à repercussão das declarações, o presidente afirmou que não planeja enviar ao Congresso uma proposta para alterar a legislação.

As declarações de Bolsonaro incomodaram entidades que atuam no combate ao trabalho análogo à escravidão. O questionamento sobre a legislação referente ao tema foi considerado uma forma de retrocesso.

“Em política de direitos humanos, é vedado o retrocesso. A partir do momento em que se tem uma conquista da civilização, não se pode voltar à barbárie anterior”, ressalta a procuradora Catarina Von Zuben, titular da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, em entrevista à BBC News Brasil.

De 2003 a 2018, foram resgatados 45 mil trabalhadores em situação de trabalho semelhante à escravidão no Brasil, conforme o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas.

Os resgates

João passou quase 15 anos trabalhando em fazendas em situação degradante. “O ‘gato’ era quem levava a gente para os lugares. Era uma das poucas formas de trabalho que a gente encontrava”, detalha.

Em todas as propriedades rurais onde trabalhou na época, as situações eram semelhantes: comida rara, água suja e local precário para dormir.

Ele, junto com mais de 50 colegas, foi resgatado em 2003 por auditores do que hoje é o Ministério da Economia. Na época, o grupo estava havia um mês em uma propriedade rural no Pará, em uma área próxima ao Mato Grosso, onde fazia a derrubada de árvores.

A situação vivida por João e pelos colegas somente foi descoberta após uma briga entre dois trabalhadores do grupo. “Um pegou até machado para matar o outro”, relembra. Um funcionário da fazenda, que tinha acesso ao telefone, ligou para a polícia, que foi ao local para atender a ocorrência da briga. Os policiais notaram o serviço ilegal na fazenda e acionaram o Ministério Público do Trabalho (MPT).

Em 2003, além de João e dos colegas, também foram resgatadas outras 5,2 mil pessoas em situação análoga à escravidão. Em comparativo com os últimos anos, o número de resgates diminuiu.

Em 2018, por exemplo, segundo dados divulgados pelo Ministério da Economia, foram encontradas 1.723 pessoas em condições semelhantes à escravidão – destas, 1.113 foram resgatadas.

À primeira vista, a redução de resgates pode parecer um dado positivo. Porém, Catarina Von Zuben é enfática: a diminuição representa uma situação ainda mais alarmante.

“Houve certa conscientização de alguns segmentos. Mas o problema é que há menos fiscalização, porque houve redução nos números de fiscais. Muitas aposentadorias de auditores não foram repostas e os concursos são insuficientes. Em todo o Brasil, há apenas 19 auditores fiscais que atuam diretamente com trabalho escravo. Hoje, eles compõem quatro equipes. No passado, havia mais de 10 equipes para fazer esse trabalho”, diz.

Catarina Von Zuben
Direito de imagemDIVULGAÇÃO/MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO Image caption Procuradora diz que possíveis alterações na lei em relação ao trabalho análogo à escravidão pode ser pejudicial até mesmo para a economia do país

Com menos fiscalização, os números de resgates cada vez mais deixam de corresponder à realidade no Brasil. “Há muitos casos que não são mais notificados, por haver menos fiscais”, ressalta Catarina.

O setor rural é a área em que há mais casos de trabalho análogo à escravidão. A categoria “trabalhador agropecuário em geral” corresponde a 73% dos casos registrados no Brasil. Há também registros em funções como servente de obras (3%), trabalhador da pecuária (3%) e pedreiro (2%), entre outros.

A legislação

O Artigo 149 do Código Penal prevê punição a quem reduzir alguém à condição análoga à de escravo, que pode ser caracterizada por situações como trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho, restrição à locomoção do empregado – principalmente em razão de dívidas contraídas com o empregador.

Ainda nas declarações da terça, Bolsonaro criticou o fato de que situações como “colchão abaixo de oito centímetros” e “quarto com ventilação inadequada” são utilizadas como critérios para definir condições análogas às de escravidão.

A titular da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo rebate as argumentações do presidente.

“Quando há a fiscalização, o auditor fiscal autua por todas as irregularidades que ele encontra. Dentre elas, pode haver irregularidades mais simples, como o caso em que faltava saboneteira em um banheiro. Era uma das infrações no meio de dezenas. Não é a saboneteira que caracteriza a mão de obra escrava. São vários fatos. A nossa fiscalização é boa. Os resgates são criteriosos e não é algo banal”, declara Catarina.

A procuradora afirma que a legislação atual é clara em relação ao trabalho análogo à escravidão. Possíveis alterações que possam afrouxar a definição sobre o tema são vistas como prejudiciais, inclusive para a economia do país.

“Não é só o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro que melhora a situação do país. É necessário haver transparência das cadeias produtivas. Há grandes países e fundos que não investem se não houver uma cadeia produtiva, do campo até a entrega, na qual não há certeza de que não houve danos ambientais ou desrespeito aos direitos humanos”, pontua Catarina.

“Até para a sobrevivência do país, não tem como não imaginar a importância do combate ao trabalho escravo. Era um assunto que a gente nem deveria mais estar falando. É uma questão de direitos humanos”, acrescenta.

Após o resgate

Depois que os auditores foram à propriedade rural em que trabalhava, João e os colegas foram liberados e encaminhados para uma unidade da Pastoral do Imigrante na região – diversas instituições filantrópicas prestam apoio a resgatados.

O proprietário da fazenda foi autuado e teve de pagar R$ 600 a cada um dos mais de 50 trabalhadores que ficaram um mês em sua propriedade – na época, o valor correspondia a mais de dois salários mínimos.

As indenizações são formas de punição aplicadas àqueles que exploram o trabalho escravo. Conforme o Ministério da Economia, as multas aplicadas aos que exploravam as pessoas resgatadas no ano passado, em todo o Brasil, somaram cerca de R$ 3,4 milhões.

Lona e redes onde trabalhadores dormiam em resgate feito em 2016, em Chapada dos Guimarães (MT)
Direito de imagemSÉRGIO CARVALHO/AUDITOR-FISCAL DO TRABALHO Image caption Trabalhadores foram liberados e encaminhados para unidade da Pastoral do Imigrante

Em 2014, uma emenda incluiu um trecho que também permite a possibilidade de a área rural ou urbana em que houver exploração de trabalho escravo ser expropriada e destinada à reforma agrária ou habitação popular, sem indenização ao proprietário. O trecho foi criticado por Bolsonaro, que o classificou como uma forma de insegurança ao produtor rural.

Depois da indenização, João teve apoio de representantes do Ministério Público do Trabalho e de instituições filantrópicas que ajudam pessoas resgatadas em situação análoga à escravidão.

Ele fez curso profissionalizante por dois meses, para que pudesse trabalhar como tratorista. Para o homem, que estudou somente até a quarta série, as aulas foram uma forma de se sentir novamente valorizado. “Foi um período muito importante para mim, depois de tudo o que passei”, diz.

Hoje, mais de 15 anos depois, João é casado e mora em Marabá (PA) e trabalha como atendente na cantina de uma propriedade rural. Ele conta que recebe R$ 1,5 mil por mês e se orgulha por ter a carteira assinada.

“Agora eu vejo o trabalho escravo como uma falta de atenção e humanidade. Deveriam ter mais compaixão com a gente que vive nessa luta, sem profissão certa. As pessoas ganham pouco e ainda são obrigadas a trabalhar de qualquer jeito. Isso é uma forma muito triste para humilhar o ser humano”, declara.

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