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Papa Francisco: ‘Em Gaza, apenas a morte vence, não há paz sem os dois Estados’

"Parem já com as bombas e os mísseis, ponham fim às atitudes hostis. Em todos os lugares. A guerra é sempre e só uma derrota. Para todos" - Tiziana Fabi/AFP
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Em entrevista Papa Francisco fala sobre guerras, solidão e inteligência artificial

Em uma tarde de final de janeiro, com o sol aquecendo agradavelmente Roma, atravessamos as Sagradas Muralhas do Vaticano pela Porta do Perugino e chegamos à Casa Santa Marta. O Papa Francisco nos cumprimenta sorridente.

Santidade, o mundo está no meio da “guerra mundial em pedaços” contra a qual o senhor alertou anos atrás… 

Não cansarei de repetir meu apelo, dirigido em particular a quem tem responsabilidade política: parem já com as bombas e os mísseis, ponham fim às atitudes hostis. Em todos os lugares. A guerra é sempre e só uma derrota. Para todos. Os únicos que ganham são os fabricantes e os traficantes de armas. É urgente um cessar-fogo mundial: não nos damos conta, ou fingimos não ver, que estamos à beira do abismo.

Existe a “guerra justa”? 

Há que distinguir e ter muito cuidado com os termos. Se uns ladrões entram em sua casa para roubar e te atacam, você se defende. Mas não gosto de chamar essa reação de ‘guerra justa’, porque é uma definição que pode ser explorada. É correto e legítimo se defender, sim. Mas, por favor, falemos de autodefesa, para evitar justificar as guerras, que sempre estão erradas.

Como o senhor descreve a situação entre Israel e Palestina? 

Agora o conflito está se ampliando dramaticamente. O acordo de Oslo, tão claro, com a solução dos dois Estados. Enquanto esse acordo não for aplicado, a verdadeira paz continuará muito distante.

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O que você mais teme? 

O que mais temo é uma escalada militar. O conflito pode agravar ainda mais as tensões e a violência que já marcam o planeta. Mas, ao mesmo tempo, cultivo certa esperança nestes momentos, porque estão sendo realizadas reuniões confidenciais para tentar chegar a um acordo. Uma trégua já seria um bom resultado.

Como está a atuação da Santa Sé nesta fase dos confrontos no Oriente Médio? 

A Santa Sé está agindo na fase dos confrontos no Oriente Médio com a ajuda do cardeal Pierbattista Pizzaballa, Patriarca Latino de Jerusalém. Ele é um grande líder e está tentando mediar com determinação. Os cristãos e o povo de Gaza – não me refiro ao Hamas – têm direito à paz. Todos os dias faço uma videochamada para a paróquia de Gaza. Nos vemos na tela do Zoom, falo com as pessoas. Há 600 pessoas na paróquia. Eles continuam suas vidas encarando a morte todos os dias. E então, a outra prioridade é sempre “a libertação dos reféns israelenses.

E como a diplomacia do Vaticano está agindo em relação ao conflito na Ucrânia? 

Quanto à diplomacia vaticana no conflito na Ucrânia, eu confiei a tarefa ao cardeal Matteo Zuppi, presidente da Conferência Episcopal Italiana: ele é bom e experiente, e está realizando um trabalho diplomático constante e paciente para estacionar os conflitos e construir um clima de reconciliação. Ele foi a Kiev e Moscou, e depois a Washington e Pequim. A Santa Sé está tentando mediar para a troca de prisioneiros e o retorno dos civis ucranianos. Em particular, estamos trabalhando com a Sra. Maria Llova-Belova, Comissária russa para os direitos das crianças, para a repatriação das crianças ucranianas levadas à força para a Rússia. Alguns já voltaram para casa com suas famílias.

Quais são os pilares sobre os quais construir a paz mundial? 

Diálogo. Diálogo. Diálogo. E então, a busca pelo espírito de solidariedade e fraternidade humana. Não podemos continuar nos matando como irmãos e irmãs! Não faz sentido.

O senhor sempre chama para a oração: quanto ela conta e pode ter impacto enquanto o mundo arde? 

A oração não é abstrata! É uma luta com o Senhor para que Ele nos dê algo. A oração é concreta. E forte, e incisiva. A oração conta! Porque prepara o caminho para a pacificação, bate à porta do coração de Deus para que Ele ilumine e conduza os seres humanos à paz. A paz é um dom que Deus pode nos dar mesmo quando parece que a guerra está impondo-se inexoravelmente. Por isso, insisto em cada ocasião: ‘devemos rezar pela paz’.

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31 de janeiro é o dia de São João Bosco, “o santo dos jovens”: o que ele ensina ainda hoje? 

Parece que São João Bosco disse uma vez: ‘Se você quer ter e ajudar os jovens, jogue uma bola no caminho’. O fundador dos Salesianos e das Filhas de Maria Auxiliadora foi capaz de chamar, envolver e entusiasmar meninos sem futuro e dar-lhes um futuro. Como? Com os oratórios. Lá, os jovens jogavam, rezavam e aprendiam. Para milhares de pequenos abandonados, desesperados, destinados a uma existência de penúria e exclusão, São João Bosco traçou o caminho para um futuro de dignidade e esperança. Ele lhes deu as ferramentas intelectuais e espirituais para superar os obstáculos e tirar o melhor de suas vidas. E ele conseguiu apesar dos ataques ferozes: não esqueçamos que o Santo de Valdocco viveu na época do Piemonte maçônico e devorador de padres, e nesse ambiente hostil foi capaz de transformar a atitude social da região em relação aos jovens. São João Bosco mudou um pouco a história. Don Bosco mudou um pouco a história. Também com reflexões culturais. E também através de conversas com aqueles que se opunham a ele.

Em Lisboa, no verão passado, diante de milhões de jovens, o senhor gritou com força que a Igreja é para “todos, todos, todos”: fazer uma Igreja aberta a todos é o grande desafio de seu pontificado? 

É a chave para entender Jesus. Cristo chama a todos. A todos. Há uma parábola: a do banquete de casamento para o qual ninguém aparece, e então o rei manda os servos ‘para as encruzilhadas e todos os que encontrarem, chamem-nos para o casamento’. O Filho de Deus quer deixar claro que não quer um grupo seleto, uma elite. Então, alguém pode ‘entrar clandestinamente’, mas nesse momento é Deus quem cuida disso, quem mostra o caminho. Quando me perguntam: ‘Mas, essas pessoas que estão em uma situação moral tão inadequada também podem entrar?’, eu garanto: ‘Todos, o Senhor disse’. Perguntas como essa têm chegado a mim principalmente nos últimos tempos, depois de algumas de minhas decisões…

Em particular, a bênção de “casais irregulares e do mesmo sexo”… 

Me perguntam por quê. Respondo: o Evangelho é para santificar a todos. Claro, desde que haja boa vontade. E é necessário dar instruções precisas sobre a vida cristã (destaco que não se abençoa a união, mas sim as pessoas). Mas todos somos pecadores: então, por que fazer uma lista de pecadores que podem entrar na Igreja e uma lista de pecadores que não podem estar na Igreja? Isso não é o Evangelho.

Durante a popular entrevista televisiva com Fabio Fazio no programa Che Tempo Che Fa, o senhor falou sobre o preço da solidão que se deve pagar após um passo como este: como está lidando com o levantamento dos escudos dos que protestam?

Os que protestam com veemência pertencem a pequenos grupos ideológicos. Um exemplo são os africanos: para eles, a homossexualidade é algo ‘feio’ do ponto de vista cultural, não a toleram. Mas, em geral, confio que aos poucos todo o mundo vá compreendendo o espírito da declaração ‘Fiducia Supplicans’ do Dicastério para a Doutrina da Fé: quer incluir, não dividir. Convida a acolher e, depois, a confiar em Deus.

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Você sofre de solidão? 

A solidão é tão variável quanto a primavera: nesta estação, você pode ter um dia lindo, com sol, céu azul e uma brisa agradável; 24 horas depois, talvez o tempo fique sombrio. Todos experimentamos a solidão. Quem disser ‘não sei o que é solidão’ é uma pessoa que está faltando algo. Quando me sinto sozinho, a primeira coisa que faço é rezar. E quando percebo tensões ao meu redor, tento estabelecer o diálogo e a confrontação com calma. Mas sempre sigo em frente, dia após dia.

Você teme que ocorra uma cisma? 

Não. Sempre houve pequenos grupos na Igreja que manifestaram pensamentos cismáticos… é preciso deixá-los ser e passar… e olhar para frente.

Estamos no início de uma nova era marcada pela inteligência artificial: quais são suas esperanças e preocupações? 

Toda inovação científica e tecnológica deve ter um caráter humano e permitir que os seres humanos continuem sendo plenamente humanos. Se perdermos o caráter humano, perdemos a humanidade. Em minha mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, escrevi: ‘Nesta época que corre o risco de ser rica em tecnologia e pobre em humanidade, nossa reflexão só pode partir do coração humano’. A inteligência artificial é um belo passo à frente que pode resolver muitos problemas, mas potencialmente, se for manuseada sem ética, também pode causar muito dano à humanidade.O objetivo deve ser que a Inteligência Artificial esteja sempre em harmonia com a dignidade da pessoa. Se não houver essa harmonia, será um suicídio.

Deus continuará encontrando um lugar entre os robôs? 

Deus está sempre lá. Ele se vira. Sempre está perto de nós, disposto a nos ajudar, mesmo que não percebamos. Mesmo quando não o procuramos. Mesmo quando não o queremos. E se ele vê que as coisas estão descontroladas, ele se faz ouvir. Com suas maneiras, que superam tudo e todos.

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Como está sua saúde? 

Eu tenho algumas dores, mas já estou melhor, estou bem.

Você se incomoda em ouvir falar de sua possível renúncia a cada tosse? 

Não, porque a renúncia é uma possibilidade para todos os pontífices. Mas agora não estou pensando nisso. Não me incomoda. Quando eu não puder mais, começarei a pensar nisso. E a rezar sobre isso.

Quais poderiam ser suas viagens em 2024? 

Uma para a Bélgica. Outra para Timor Leste, Papua Nova Guiné e Indonésia em agosto. Depois há a hipótese da Argentina, mas por enquanto a mantenho entre parênteses: a organização da visita ainda não começou. Quanto à Itália, irei a Verona em maio e a Trieste em julho.

O novo presidente da Argentina, Javier Milei, o atacou várias vezes com ímpeto nos últimos meses: você se sentiu ofendido? 

Não. As palavras na campanha eleitoral vêm e vão.

Você se encontrará com ele? 

Sim. Em 11 de fevereiro, ele virá para a canonização de ‘Mama Antula’, fundadora da Casa de Exercícios Espirituais de Buenos Aires. Antes das canonizações, é costume saudar as autoridades na sacristia. E então eu sei que ele me pediu uma reunião para conversar comigo: eu aceitei, então nos veremos. E estou disposto a instaurar um diálogo – falar e ouvir – com ele. Como com todo mundo.

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Por que você criou o Dia Mundial da Criança? 

Porque faltava. Percebi a necessidade. Em novembro, celebramos esse encontro com milhares de crianças e jovens de todo o mundo no ‘Aula Paulo VI’: foi muito bom. Nos dias 25 e 26 de maio, será realizada em Roma a primeira Jornada oficial. O objetivo é provocar a meditação e a ação para responder às perguntas: ‘Que tipo de mundo queremos deixar para as crianças que estão crescendo? Com quais perspectivas?’. Se os ouvirmos e observarmos, as crianças são mestres de vida para nós, adultos e idosos, porque são puras, genuínas e espontâneas. Cada comportamento delas, mesmo o mais complicado e aparentemente indecifrável, é uma lição. Se nos esforçarmos pelo bem delas, faremos bem a nós mesmos. E a toda a humanidade.

Qual é o seu sonho para a Igreja que está por vir? 

Seguir a bela definição de ‘Dei Verbum’, a constituição dogmática do Concílio Vaticano II: ‘Dei Verbum religiose audiens et fidenter proclamans’, ouvir religiosamente a Palavra de Deus e proclamá-la com confiança firme e força. Sonho com uma Igreja que saiba estar próxima das pessoas na concretude e nos matizes da vida cotidiana. Continuo pensando no que disse nas Congregações gerais, as reuniões dos cardeais que precedem o Conclave: ‘A Igreja é chamada a sair de si mesma e a se dirigir às periferias, não apenas as geográficas, mas também as existenciais: as do mistério do pecado, da dor, da injustiça, as da ignorância e da ausência de fé, as do pensamento, as de toda forma de miséria’.

O que você lembra dos dias históricos de março há onze anos? 

Depois do meu discurso, houve aplausos, algo inaudito naquele contexto. Mas em absoluto eu havia adivinhado o que muitos me revelariam mais tarde: aquele discurso foi minha ‘condenação’ (sorri, nda).

Quando saía da ‘Aula do Sínodo’, havia um cardeal angloparlante que me viu e exclamou: ‘Que bem o que você disse! Lindo. Lindo. Precisamos de um Papa como você’. Mas eu não tinha percebido a campanha que estava sendo gestada para me eleger. Até o almoço de 13 de março, aqui na Casa Santa Marta, poucas horas antes da votação decisiva. Enquanto comíamos, me fizeram duas ou três perguntas ‘suspeitas’… Então, na minha cabeça, comecei a dizer a mim mesmo: ‘Aqui está acontecendo algo estranho…’. Mas mesmo assim, consegui dormir a sesta. E quando me escolheram, tive uma surpreendente sensação de paz interior.

E como você se sente hoje? 

Sinto-me como um pároco. De uma paróquia muito grande, planetária, é claro, mas gosto de manter o espírito de pároco. E estar entre as pessoas. Onde sempre encontro Deus.

www.brasildefato.com.br/Domenico Agasso /La Stampa

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